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              Se a defesa que aqui se faz é de um Estado Brincante, faz-se necessário esclarecer:
              De qual brincar estaria me referindo? O que caracterizaria esse brincar? O que faria de uma ação ser considerada um brincar?

            Não se trata de categorizar o brincar de modo a fechá-lo e encaixotá-lo em uma ideia, mas de ressaltar quais as características que a meu ver saltam aos olhos e abrem caminhos para relacioná-lo com o processo de criação em arte cênica. Importante ressaltar que esse brincar, num primeiro momento, será referente àquele das crianças[1], e com isso será abordado também, de um modo geral, o estado da criança, seus modos de estar no mundo e agir. Isso se dará através da pesquisa de textos e vídeos de quem[2] já discorreu sobre o tema, para aqui corrermos juntos, além da experiência profissional com crianças[3].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Brincar é relação

Esse menino se encontra no com.
No convívio, no contato.
Esse menino aparece em conjunto
Juntou alguém com outro alguém
Se abriram um ao outro, se juntaram
E o menino apareceu.
Mesmo a quem está só
Esse menino aparece
No estar só com algo
Plantando relação
Se abrindo a si e ao que venha
Do contato, do convívio.
Esse menino contigo aparece
E se revela:
É o brincar.

 

              Uma característica fundamental, que escolho aqui para iniciar e ser base para as que venham, é a relação. O brincar, para se fazer presente, prescinde de estar com algo. Algo este que não se restringe a uma pessoa, pois mesmo se tratando de brincar sozinho, o relacionar-se é também a base, uma vez que o ato acontece premido de abertura para se estabelecer um contato - com um objeto, por exemplo, ou até consigo próprio.

              Tratando-se do brincar com outra pessoa, percebe-se que é a partir desse ato que se inicia um importante processo: a socialização da criança. De acordo com Alberto Ikeda[4], o ser humano começa a fazer os primeiros contatos sociais a partir do brincar, do relacionar-se de maneira amistosa, a partir do riso e do divertir-se.

              Assim, considerando a socialização - a partir do relacionar-se - como eixo fundamental do brincar, é possível abarcar ainda uma atitude que tende à generosidade e cooperação como características importantes:

O brincar como desafio deste novo século no uso do tempo livre; o brincar como possibilidade criativa; como instrumento de inserção em uma sociedade regrada; como possibilidade de conviver com os outros, de me colocar no lugar do outro; de ganhar hoje e perder amanhã; de liderar e ser conduzido; de falar e de ouvir. O brincar como desafio ao trabalho solidário, em equipe, a uma postura mais cooperativa e ecológica. (FRIEDMANN, 2004, p. 5).

            Deste modo, o brincar traz uma consciência para consigo e para com o outro em consonância, em ampliação também da consciência do meio onde se encontra, ou seja, o espaço. Segundo Rosane Almeida[5], o relacionar-se, como parte da necessidade humana de brincar, estaria ligado também a um entendimento de como se existe dentro de um espaço e de como se apropria disso que está ao seu alcance.

              É importante ressaltar que o relacionar-se se dá a partir do contato, sendo essa a chave para o início de um possível brincar. Sobre isso, Ligia Kohan (2014) ressalta o primeiro brincar do ser humano como a relação que se estabelece dentro da barriga da mãe, estando o bebê em disponibilidade, abertura e anseio para o estabelecimento de contato.

A brincadeira inicia-se no ventre, com o movimento da água, do cordão umbilical e no encontro com os membros do próprio corpo, ao som do útero e do batimento cardíaco da mãe. Ainda nesse interno calor maternal, entramos em contato com os sons do mundo externo, através da escuta, sem ao menos saber que tudo aquilo não faz parte do nosso mundo interno. [...] Até mesmo segundos antes do nascimento, nossa brincadeira ganha uma outra função, além do mero prazer de nadar nesse “ambiente benevolente”, a de estabelecer contato (interno e/ou externo, com o meio e/ou com o outro) e buscar constantemente o ajustamento criativo, estabelecido por esse contato. (KOHAN, 2014, p.26).

 

Brincar é abertura

              Se brincar é relação, o que estaria intrínseco a essa qualidade? Para que um contato se estabeleça, é necessário que aquele que se relaciona esteja, em algum grau, em estado de abertura. Esta é uma característica claramente notável na criança: a disponibilidade. A abertura a qual me refiro diz respeito, sobretudo, à sensibilidade, ou seja, ao modo como os sentidos da criança estão mais porosos e as sensações possuem um valor primordial na conduta de suas ações.

              Adriana Friedmann (2005, p.17) fala sobre a necessidade do resgate de uma infância com algumas qualidades essenciais e dentre elas estão atitudes que revelam esse estado de abertura e disponibilidade sensível para o outro, intrínseca à característica abordada anteriormente - relação:

Uma infância na qual haja uma preocupação em se deter no outro, ouvi-lo profunda e verdadeiramente. Uma infância na qual o ser humano esteja sensível e voltado às manifestações de carências, agressividade, dificuldades, interesses, desejos, conflitos, ao significado dos gestos, do espaço, das produções artísticas, das dificuldades, do significado oculto das brincadeiras das crianças. (FRIEDMANN, 2005, p.17).

              Sobre isso, Gandhy Piorsky (2015) traz um posicionamento que relaciona a sensibilidade a um “auscultar”, que se refere a um termo médico técnico de escuta dos sons internos do corpo. Ou seja, pode-se entender essa sensibilidade como uma percepção indireta de algo que se encontra nas profundezas, por trás do que é visto - percepção esta comum à criança.

O ouvir da criança alcança campos muito mais profundos, além desse nosso universo formal e material, no sentido de que ela vai auscultar coisas por trás do revelado e do claro, mesmo que essas coisas sejam apenas imaginárias, mas são forças. (PIORSKY, 2015).

 

Brincar é espontaneidade

O fundo do ser
exalando em plenitude
o que espontâneo for
na graça de ser
o que se é.

              É possível perceber, a partir do material pesquisado acerca do brincar e da criança, que o brincar tem a capacidade de tocar o centro de espontaneidade do ser humano, justamente por permitir de modo livre a vazão da expressão sem julgamentos. Centro esse que permite ao ser humano se lançar à vida e suas possíveis relações e contatos. Assim, pode-se traçar uma relação entre esse centro espontâneo e a criança - em seu modo de estar e agir no mundo -, ela que está em contato íntimo com a fonte de onde veio, sendo novidade no mundo e para com o mundo. Sobre isso, Maria Amélia Pereira[6] revela: “O brincar é uma linguagem do espontâneo, e nesse sentido eu acho que ela - eu poderia dizer, porque hoje eu acredito nisso - é a linguagem da alma, instantânea, vem direto”.

              Poderíamos considerar ainda a espontaneidade como uma liberdade de exposição. Exposição de si para o outro e de si para si próprio, sendo esta exposição a base para aquele estabelecimento de relação e contato em abertura, características já elencadas como fundamentais ao brincar. Sobre essa coragem de ser o que se é, tão natural às crianças, tem-se:

O Brincar traz de volta a alma da nossa criança: no ato de brincar, o ser humano se mostra na sua essência, sem sabê-lo, de forma inconsciente. No brincar, o ser humano imita, medita, sonha, imagina. Seus desejos e seus medos transformam-se, naquele segundo, em realidade. O brincar descortina um mundo possível e imaginário para os brincantes. O brincar convida a ser eu mesmo. (FRIEDMANN, 2005, p. 95).

 

              Nesta passagem, Friedmann traz, junto com a ideia de revelação da essência através do brincar, a noção de que isso ocorre de maneira inconsciente. O que muito dialoga com um pensamento de Antonio Nóbrega[7] que menciona a brincadeira como uma ponte do inconsciente para o consciente. Pode-se ainda traçar relação entre esse mundo inconsciente e o universo mitológico, e nesse sentido, as concepções de Adriana Friedmann e de Antonio Nóbrega conversam também com as de Gandhy Piorski[8]:

Toda memória de infância é imediatamente obra de arte, porque a criança mora num lugar, em especialmente até os sete anos, em que ela é um nimbo miológico, em que ela desconhece as forças do fim e da transitoriedade, ela desconhece a morte. [...] A criança não está explicando nada porque ela é dessa aura estética, ela é desse nimbo mitológico. E por isso é que ela pergunta: “quem fez deus?”, como os jônios perguntavam. Por isso ela pergunta: “a lua sente? A lua chora?”. Por isso as perguntas das crianças são cosmogônicas, porque ela está nesse primórdio, nessa força de primordialidade. (PIORSKI, 2015).

              Assim, o brincar pode ser visto como um canal para a seiva primordial da vida, estando a criança em completa comunhão e abertura para o essencial se fazer ação. Maria Amelia Pereira[9] dialoga com isso deste modo: “Brincar é viver. Ela (a criança) ali está totalmente inteira, respondendo à sua própria vida. A vida está se exprimindo dentro dela, ali”. Ou seja, sob esta perspectiva a criança habitaria o mundo em completa inteireza, como nos traz Lydia Hortelio[10]: “O ser humano ainda novo é inteiro, então sentir, pensar e querer ir além estão juntos, são uma unidade”.

              E assim, a partir do contato com esse núcleo de espontaneidade, o brincar se faz também com base em um movimento em direção ao encontro com a própria identidade e validação da existência, de acordo com Ligia Kohan (2014, p.26): “O brincar nada mais é do que um movimento orgânico, uma maneira de validar nossa existência, um experimento intrínseco do ser humano, em busca de sua identidade”.

 

Brincar é imaginação

Daquilo que se crê sem ver
Daquilo que voa sem amarras
Daquilo que te leva longe
sem sair do espaço tempo de agora
Daquilo que viaja por dentro
sem economia de fantasia
Daquilo que atravessa o real
É só imagem em ação.

              Imaginação se fazendo realidade - assim o brincar dança. A partir de uma materialidade real e palpável, imagens pululam e embarcam ações que se concatenam em outras imagens e assim se segue... Uma lata que vira um avião, um avião que vira um trem... É o famoso faz de conta se fazendo. Para tanto, melhor definição nos traz Mario Quintana (1906 - 1994), com o poema Mentiras:

Lili vive no mundo do faz de conta...
Faz de conta que isto é um avião.
Zzzzzuuu...
Depois aterrizou em um piquê e virou um trem.
Tuc tuc tuc tuc...
Entrou pelo túnel, chispando.
Mas debaixo da mesa havia bandidos.
Pum! Pum! Pum!
O trem descarrilou.
E o mocinho?
Onde é que está o mocinho?
Meu Deus! onde é que está o mocinho?!
No auge da confusão, levaram Lili para cama, à força.
E o trem ficou tristemente derribado no chão,
Fazendo de conta que era mesmo uma lata de sardinha[11]

 

              A imaginação seria então a criação de um mundo paralelo, como traz à tona Antonio Nóbrega[12]: “Eu acho que o brincar é o modo que a gente tem de organizar o nosso mundo criando um mundo paralelo ao mundo que a gente vive mergulhado cotidianamente”. Essa possibilidade de transformar a realidade traz à criança uma autoria com relação à brincadeira e consequentemente à própria vida.

              Segundo Kishimoto (1994, p. 5), Christie[13] (1991, p. 4) elabora critérios para identificar o conceito de jogo, que podem muito bem ser aqui emprestados com relação ao brincar. O primeiro destes critérios – que se relaciona à imaginação - é a não-literalidade, ou seja, a atribuição de um novo sentido a algo, enquanto que seu sentido habitual é ignorado, de forma que a realidade interna predomine sobre a externa. Assim, seria a supremacia da imaginação sobre a realidade. A autora cita como exemplo um ursinho de pelúcia que serve como filhinho e a criança imitar o irmão que chora.

              O ato de brincar com alicerces na imaginação abre também as portas para a criatividade. Sobre esta, Zinker (1997) revela: “A criatividade representa a ruptura dos limites, a afirmação da vida além da vida – a vida se encaminhando para algo além de si próprio”. Esse exercício de ir além do que está posto e de romper limites estaria ligado, ainda, a uma busca inconsciente de se chegar ao cerne das coisas, naquilo que não é visto, mas que sustenta a existência de algo. Gandhy Piorski[14] traz tal característica como a natureza do imaginar:

Bachelard[15] vai dizer que se a educação soubesse ver, veria que quando a criança quebra um brinquedo, ela está querendo conhecer a alma daquele brinquedo, o que está dentro daquilo ali, o que está por trás daquela coisa. Porque a natureza do imaginar é ir atrás do oculto da vida. (PIORSKI, 2015).

              Pode-se entender ainda esse oculto da vida não apenas como o que está por trás do que é externo, mas também o que está por trás de si, ampliando a percepção para uma navegação nos mundos internos através da imaginação:

Através da fantasia, a criança se aproxima de seus mundos externos e internos, das diversas personagens de sua realidade e dos diferentes aspectos de nossa personalidade. Utilizando as palavras de Rhyne[16] “[...] cada um de nós escolhe o tipo de fantasias imaginárias que estão, de algum modo, relacionadas com a realidade da nossa vida individual”. (KOHAN, 2014, p.24).

Brincar é expressão

Todas as produções artísticas (e o brincar) são fantasias tornadas realidade e todas transmitem uma mensagem. A criança vive expressando seu mundo interno, seja na superfície de um papel (ou qualquer outro suporte), com diversos meios (lápis, giz, tinta, argila etc) ou no espaço, com seu corpo. A Arte do Brincar é um processo natural, em que a criança torna real, através da fantasia, sua imaginação – uma maneira de externar seu mundo interno. (KOHAN, 2014, p.24).

              A expressão, como característica do brincar, está intimamente relacionada ao que foi abordado anteriormente – a imaginação. Tomando carona nesta, o ato de expressar-se seria apenas o destino desse carro. Assim, a continuidade do ato de imaginar, no brincar, desemboca em externalizá-lo, de modo que se comuniquem as imagens acionadas, tornando-as reais.

Deste modo, aborda-se mais uma vez uma possível transformação e reconstrução da realidade através do brincar. O faz de conta ganha aqui uma possível perspectiva - a representação:

O brincar é um sistema de signos que representa, de forma inconsciente, a vida real, sob o olhar daquele que brinca (o jogo simbólico, por exemplo); o brinquedo ou os objetos utilizados no jogo representam uma ponte, um meio de comunicação, a partir do qual designa-se uma realidade mais complexa. (FRIEDMAN, 2005, p.95).

 

              Contando e vivenciando sua história e de quem rodeia seu universo, um jogo simbólico é estabelecido pela criança, esta podendo se colocar no lugar do outro ou até mesmo em situações diversas de seu repertório enquanto ser humano, revivendo experiências ou passando a viver aquilo que deseja, teme ou simplesmente imagina. “Jogo simbólico” é tratado aqui como o conceito desenvolvido por Piaget (1978), fazendo alusão ao “faz-de-conta”, que surge com o aparecimento da representação e da linguagem no desenvolvimento da criança. Trata-se de uma atividade que envolve o uso idiossincrático de símbolos, assimilando a realidade externa para si e fazendo transposições ou distorções, de modo a usualmente preencher desejos ou compensar e superar conflitos (KISHIMOTO, 1994, p.40).

              A expressão, no brincar, está então muito ligada a processos simbólicos e de significação. Kishimoto (1994, p.6) também menciona Fromberg (1987, p. 36), que elenca estas características entre as fundamentais[17] para o jogo infantil. O simbolismo neste caso se refere à representação da realidade e de atitudes, enquanto que a significação diz respeito ao relacionar e expressar de experiências. 

Deste modo, o brincar tem também como importante pilar a expressão - um trânsito entre o mundo interno, repleto de fantasias e possibilidades, para o mundo externo, numa materialização pela comunicação.

 

Brincar é descoberta

Fosse todo o mundo novo, espaço todo desconhecido
Fossem hoje os primeiros contatos, os primeiros vínculos,
Fosse eu criança aberta nesse mundo novo
Fosse espontânea e sem filtros aos quereres
E fosse expresso tudo o que fosse,
Iria para perto, ao contato,
Desejosa por apreender,
Movida a descobrir.

              Declaro que as características aqui elencadas como estruturantes ao brincar vieram à tona sobretudo a partir de referências em leituras e vídeos sobre o tema. Porém, a partir da experiência profissional do brincar com crianças - com a Trupe Dragão Encantado e em Brinquedoteca do Clube Hebraica – outra característica saltou as olhos, necessitando ser então mencionada: a descoberta. Puder perceber que, muito relacionada à relação, a descoberta é aquilo que muitas vezes impulsiona e guia o brincar.

              É possível afirmar que essa descoberta se refere ao desejo de conhecer aquilo que é muitas vezes novo, ou de re-conhecer o já conhecido, em suas novas e múltiplas possibilidades. Deste modo, se relaciona também com a imaginação, no sentido de explorar o que está além do real já pressuposto, indo para o campo daquilo que é possível, descobrindo-o. Tal relação já foi mencionada (p. 20) a partir de uma citação de Piorski, reflexionando a necessidade da criança de conhecer a fundo um objeto, sua “alma”, o que tem por trás dele.

              É intrínseca a ligação desta característica também com a relação, uma vez que essa descoberta é vista como o objetivo de uma interação, ou seja, no brincar é realizada uma interação com um objeto com o objetivo de descobrir esse objeto, atravessá-lo, tocá-lo a fundo. Foi tratado aqui como o objeto, mas ressalto que pode ser também um sujeito, ou seja, outra(s) pessoa(s) com quem se brinca e que ambas estão se descobrindo e descobrindo onde essa relação pode chegar, o que pode causar, quais os possíveis caminhos desse jogo advindo da relação.

Ao se relacionar com o outro, a criança experimenta a plasticidade de seu corpo e de exercitar suas potencialidades motoras expressivas e nessa interação poderá reconhecer semelhanças e contastes, buscando compreender e coordenar as diversas expressões e habilidades com respeito e cooperação. (KOHAN, 2014, p.13).

 

              Assim, a descoberta pode se dar também num nível pessoal, acarretando num autoconhecimento. Ainda segundo Kohan, “A criança deve brincar para conhecer os limites do seu Corpo e conhecê-lo (ainda que inconscientemente).” (2014, p. 18).

Essa descoberta poderia ser vista como um modo de desenvolvimento afetivo e cognitivo, que, como também menciona Kohan, é favorecido a partir do brincar, em correlação a um conhecimento e domínio do próprio corpo, que se dá através da socialização (KOHAN, 2014, p. 32). Ou seja, um descobrir-se com o outro, descobrindo também o outro.

 

Brincar é liberdade

              “O essencial do brincar é liberdade. Liberdade de tempo, liberdade de espaço e liberdade de criação.” David Reeks[18].

Com esta menção, uma importante característica salta aos olhos: a liberdade. E, assim como citado, pode ser referente a diversos aspectos (tempo, espaço e criação), sendo possível notar também uma autonomia da criança sendo desenvolvida. Sobre isso, Pedrosa (1947, p. 63) relata a experiência de Franz Cizek, um estudante de arquitetura que, ao passar a observar as crianças, percebeu que elas não são apenas um “adulto em ponto pequeno”, mas seres extraordinários e criadores. O ponto de sua descoberta que nos interessa é o fato de que ele notou grande disparidade entre as garatujas[19] feitas pelas crianças na escola e as que eram feitas por elas brincando num canto da rua, sem quaisquer interferências adultas: “Lá fora, os garotos esqueciam completamente as instruções do professor de desenho, e tudo o que faziam tinha coerência, constância, homogeneidade e vida [...]” (PEDROSA, 1947, p. 64).

              Ora, isso implica no fato de que, sem interferências, obedecendo à própria liberdade de criação, a criança é regida por autonomia, e é nesse chão onde o brincar realmente acontece, com maior expansão dos potenciais criativos. No entanto, não se pode ignorar a existência de muitas brincadeiras que acontecem tendo como base conduções, mas aqui a reflexão que se faz é em relação a interferências que impeçam a criação, como pais ou cuidadores que muitas vezes interrompem ou modificam o curso de um brincar que está sendo desenvolvido pela criança com as frases: “não é assim, vou te mostrar o certo”. O brincar que aqui se defende considera amplas possibilidades de realização e está a par com aquilo que expanda os potenciais criativos: “Cada criança é uma lei em si mesma. É preciso que ela mesma tenha oportunidade para desenvolver a sua própria técnica” (PEDROSA, 1947, p. 64). Entretanto, não se ignora com isso a importância dos limites, compreendendo barreiras ao que possa machucar uns aos outros e valorizando o cuidado de si e do outro, acreditando em sensíveis interferências com este fim.

              Isso também é evidenciado, segundo Kishimoto (1994, p. 6), por Christie (1991, p. 4), ao elencar como algumas das características estruturantes do jogo infantil a “flexibilidade”, a “livre escolha” e o “controle interno”. Sobre flexibilidade, tem-se:

As crianças estão mais dispostas a ensaiar novas combinações de ideias e de comportamentos em situações de jogo que em outras atividades não-recreativas. [...] A ausência de pressão do ambiente cria um clima propício para investigações necessárias à solução de problemas. Assim, o brincar leva a criança a tornar-se mais flexível e buscar alternativas de ação. (KISHIMOTO, 1994, p. 6).

A livre escolha diz respeito ao fato que de o jogo só pode ser jogo quando é selecionado livre e espontaneamente pela criança, e que se assim não for, não é jogo, mas sim um tipo de trabalho ou ensino. Kishimoto também revela características elencadas por Fromberg (1987, p. 36), sendo que uma delas é o fato de o jogo infantil ser voluntário ou intrinsecamente motivado, ao incorporar os motivos e interesses próprios da criança.

            Em continuidade a esse pensamento, Christie (1991, p. 4) afirma que no jogo são os próprios jogadores que determinam o desenvolvimento dos acontecimentos, sendo isto o controle interno. “Quando um professor utiliza um jogo educativo em sala de aula, de modo coercitivo, não permitindo liberdade ao aluno, não há controle interno. Predomina, nesse caso, o ensino, a direção do professor.” (KISHIMOTO, 1994, p.6). A autora valoriza então o brincar enquanto fim em si mesmo, o que é esclarecido ao elencar também a “prioridade no processo de brincar” como outra característica. Trata-se da atenção da criança estar focada na atividade em si, e não dos resultados que virão com isso. Para ela, jogo só é jogo se a criança pensa apenas em brincar, de modo que a utilização de jogos com outros fins dá prioridade ao produto.

              Ou seja, o que interessa no brincar aqui defendido é o processo, não o resultado final, assumindo sua natureza improdutiva. Isso conversa com o que, também segundo Kishimoto (1994, p. 4), é apontado por Caillois (1967, p 42) como características do jogo: a liberdade de ação do jogador, a separação do jogo em limites de espaço e tempo, a incerteza, o caráter improdutivo de não criar nem bens nem riquezas [...]”. Deste modo, se o foco não se encontra no resultado, a liberdade se manifesta também na forma da incerteza. Ou seja, livre de obrigações, este brincar está isento do conhecimento de onde se chegará e do que se fato acontecerá: “A incerteza sempre está presente. A ação do jogador dependerá, sempre, de fatores internos, de motivações pessoais bem como de estímulos externos, como a conduta de outros parceiros” (KISHIMOTO, 1994, p. 5).

 

Brincar é movimento integrado

              Tendo em vista todas essas características que trazem uma possível perspectiva acerca do brincar e da criança – relação, abertura, espontaneidade, imaginação, expressão, descoberta e liberdade – cabe a questão: como isso tudo se materializa?

Não poderíamos ignorar, é através do corpo que o brincar se faz acontecimento. Não somente através do corpo, mas deste em movimento integrado, característica que perpassa todas as outras. De acordo com Adriana Friedmann (2015, p. 95), no brincar a criança põe em jogo seu corpo inteiro, de modo que suas habilidades motoras e de movimento veem-se desafiadas. Assim, nesse processo, a criança, ao brincar, está em constante conhecimento do próprio corpo, do seu funcionamento e de seus limites, mesmo que de modo inconsciente, conversando mais uma vez com outro posicionamento:

Por meio do Corpo a criança se conhece, descobre limites e percebe tudo que a rodeia, relacionando-se com objetos e pessoas. A ação física é necessária para que a criança harmonize de maneira integradora as potencialidades motoras, afetivas e cognitivas. (KOHAN, 2014, p.11).

              De acordo com Cerdeira (2010), o primeiro brincar da criança é com seu próprio corpo, de modo que, ao brincar, ela vá aos poucos tomando consciência do contorno de si através do corpo em movimento, estabelecendo com isso uma percepção de si:

Ao brincar, a criança constrói o seu próprio corpo. Ao longo do primeiro ano de vida da criança, já é possível observar o brincar quando o bebê se lambuza com muito entusiasmo, formando uma película homogênea com uma mistura de muco, baba, sopa, remelo...  Esta película homogênea, formada por estes episódios de lambuzeira, passa a ser uma parte do próprio corpo do bebê, uma pele que o circunscreve e traz a sensação de contorno e de limite. (CERDEIRA, 2010, p.1).

              Em paralelo a isso, segundo Kohan (2014, p. 11), é de suma importância a liberdade para essa expressão corporal da criança, que carrega em si um espírito natural de investigação, curiosidade e desejo de conhecimento. Segundo ela, a ação física é parte da aprendizagem, acarretando numa “consciência da função dinâmica do corpo, gesto e movimento como uma manifestação pessoal e cultural”. É possível afirmar que brincar não só está permeado desse mover corpóreo, como assim o é, e faz-se necessário permitir e dar vazão a essa movimentação da criança, em contraste com os adultérios de uma opressão do movimento corporal na vida adulta:

A ‘agitação’ da criança é a busca não apenas do mundo exterior, mas também de suas próprias possibilidades. Quando punimos a atividade física da criança, reduzimos-lhes o campo de experiência, entravamos o desenvolvimento de sua inteligência e a estimulamos a reprimir a expressão natural de suas emoções. [...] Sossegamos quando, enfim, conseguem como nós fazer da expressão verbal um véu que esconde verdadeiros desejos, que modifica os impulsos naturais, que domina as sensações. (BERTHERAT, 1979, p. 73)

              Deste modo, cito mais uma vez Kohan, em defesa dessa integração através do corpo em movimento:

Incentivar a movimentação da criança seria, além de um exercício fundamental ao seu desenvolvimento físico, uma maneira orgânica de entrar em contato com suas sensações e deixar o próprio Corpo trabalhá-las. Como diz Mme. Stryf: “o corpo é a única via de acesso para penetrar universos mais sutis” (citado por BERTAZZO, 1998, p. 29). (KOHAN, 2014, p. 17).

          Importante ressaltar que atualmente se vê muito o brincar que privilegia as faculdades mentais em detrimento das físicas, principalmente com o uso de eletrônicos. Porém, ressalto também que o olhar desta pesquisa se detém num brincar que considera o ser humano em sua integridade e aciona seu corpo como um todo – entendendo voz também como parte do corpo.

              É possível considerar diversos aspectos da criança como parte desse movimento integrado, não somente o físico, mas também o mental, o sentimental, emocional, sensorial, espiritual. Deste modo, se pode abarcar uma ideia do brincar enquanto regulador do bem estar da criança: “O ato de brincar em si só promove o desenvolvimento saudável e integrado do ser, pois o organismo como um todo está envolvido com suas sensações, sentimentos e pensamentos” (KOHAN, 2014, p. 27).

              Não é intenção aqui abrir outro campo de estudo, mas a modo de exemplificação desta potência integrativa também em outras áreas de estudo, como a psicologia, Kishimoto (1994, p. 10) menciona que o jogo infantil, para Freud (1856), Claparede (1873), Erikson (1902) e Winicott (1896)[20], representa um elemento fundamental para o equilíbrio emocional da criança. De um modo simplificado, é possível mencionar essa integração ao prazer e sentimento de alegria. É o que Christie (1991, p. 4) chama de “efeito positivo”, considerando que um dos sinais que exteriorizam a presença do jogo são os sorrisos: “Quando brinca livremente e se satisfaz, nessa ação, a criança o demonstra por meio do sorriso. Esse processo traz inúmeros efeitos positivos na dominância corporal, moral e social da criança” (KISHIMOTO, 1994, p. 6).

             Deste modo, o brincar é também uma afirmação da vida e se faz ação de alegria, plenitude e liberdade, como solta Lydia Hortelio por entre os dentes em riso[21]: “(brincar é) Afirmar a vida, é, antes de mais nada, alegria! É viver em plenitude e liberdade. E é no brincar que a gente vive isso”.

 

[1] Não é intenção desta pesquisa aprofundar uma reflexão sobre os diferentes períodos de desenvolvimento da criança. Assim, o termo “criança” será abordado de um modo geral, não sendo possível, neste momento, especificações de faixas etárias e reflexões acerca disso.

[2] Com relação às características do brincar e da criança, os parceiros de referência serão Lígia Kohan, Adriana Friedmann, Gandhy Piorski, Tizuko Morchida Kishimoto e outras personalidades presentes no documentário Tarja Branca, como Alberto Ikeda, Antonio Nóbrega, David Reeks, Lydia Hortelio, Maria Amélia Pereira e Rosane Almeida.

[3] Cf. Nota de rodapé 6, p. 12.

[4]  Em depoimento no documentário Tarja Branca (2014).

[5]  Ibid.

[6]  Em depoimento no documentário Tarja Branca (2014)

[7] Ibid.

[8] Em depoimento no vídeo Como as crianças vêem o mundo? - Gandhy Piorski - O imaginário e o brincar das crianças – Infância (2015).

[9] Em depoimento no documentário Tarja Branca (2014).

[10] Ibid.

[11] Disponível em: < http://quintanares.blogspot.com.br/2006/07/mentiras.html >. Acesso: 27 de julho de 2014.

[12] Em depoimento no documentário Tarja Branca (2014).

[13] A partir de estudos de Garvey (1977), King (1979), Rubin (1983), Smith (1985) e Vollstedt (1985).

[14] Em depoimento no vídeo O Oculto - Gandhy Piorski - O imaginário e o brincar das crianças – Infância (2015).

[15] Gaston Bachelard (1884 – 1962), filósofo e poeta francês.

[16] RHYNE, Janie. Arte e Gestalt: padrões que convergem. São Paulo: Summus, 2000, p. 97.  

[17] Sendo as outras: atividade; voluntário; regrado; episódico.

[18] Em depoimento no documentário Tarja Branca (2014).

[19] Desenhos feitos por crianças, muitas vezes tidos como “rabiscos”.

[20] Psicólogos que desenvolveram estudos no século XX.

[21] No documentário Tarja Branca (2014).

Relação
Espontaneidade
Abertura
ima
Expressão
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1.O que é
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