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Como chegar próximo do mundo misterioso e simbólico da criança? Conseguimos captar, apreender a alma da criança? Como fazer? O olhar, a observação das imagens que a criança traz, da sua percepção; ouvir o que ela tem a dizer, ficar conectados com nosso próprio corpo, com nossas intuições e emoções, podem ser pistas interessantes. (FRIEDMANN, 2005, p. 17).

                 Tendo em vista o que foi levantado acerca das características do brincar comumente à criança e da criação cênica, é possível afirmar com mais clareza a similaridade entre essas duas manifestações. É essa similaridade que denomino aqui Estado Brincante, se tratando de um modo de estar, ou seja, uma qualidade de presença. Presença esta que está pautada nos oito pilares apresentados ao longo desta pesquisa: relação, abertura, espontaneidade, expressão, descoberta, imaginação, liberdade e movimento integrado. Estes pilares se inter-relacionam, conversando entre si ao gerarem o Estado Brincante e, circularmente, serem também gerados por ele. 

                 Ressalto então que não me refiro a um modo superficial de considerar o brincar, assim muitas vezes reputado pelo senso comum, como um mero entreter, um simples jogo "infantil" - em seu sentido pejorativo, de imaturidade. Longe disso, aqui a infância é reflexionada como um terreno fértil, úmido de sabedoria, fonte de potência vital, onde mora o brincar.

                 A criança, especialmente quando bebê, vive em constante experimentação e descoberta - de si, do mundo onde acaba de vir e do que o compõe -, ou seja, em constante aprendizado. Assim, trata-se de um processo contínuo de apreensão, de modo que podemos considerar o Estado Brincante um procedimento inteiramente pedagógico. Não necessariamente com o fim de aprender algo específico, mas como um modo de apreender, de compreender com o corpovoz[1] todo - como já explanado ao discorrer sobre a característica movimento integrado[2].

O aprendizado é a abertura de nós mesmos para a experiência da vida. A abertura é um ato motor; a experiência é interação entre acontecimentos sensoriais e motores; Quando a experiência do movimento está integrada em nossa educação, a percepção de nós mesmos e do mundo muda. (COHEN, 2015, p. 30).

                 O Estado Brincante pode ser levado em conta e investigada sua potência em diversos âmbitos, por se tratar de um modo de estar no mundo. Porém, aqui se faz uma pesquisa como conclusão de um curso de licenciatura em artes cênicas, de modo que este é o foco desta reflexão. Assim, se faz necessário abordar os possíveis acionamentos do Estado Brincante na criação cênica.

Não há um modelo de exercícios específicos e únicos para este acionamento, mas, assim como Bonfitto[3] diferencia treinamento como poiesis em relação a práxis, há condições a serem criadas e potencialidades a serem estimuladas:

O contraste mais importante a ser considerado é aquele entre treinamento estruturado (treinamento como práxis) e treinamento não estruturado (treinamento como poiesis). Desse modo, enquanto o treinamento como práxis pode ser associado com a aplicação de sistemas de atuação, o treinamento como poiesis pode ser relacionado com a exploração de princípios. (BONFITTO, 2009, P.3).

                 Esses princípios a serem explorados são, contudo, as características já abordadas no Capítulo 2, e essa exploração assume caráter experimental, com valorização da incerteza como detonadora de disponibilidade, assim como defende Mia Couto: “A construção e uma narrativa implica estar disponível. E para estar completamente disponível há que deixar de saber, há que deixar de estar ocupado por certezas” (COUTO, 2016, p. 3). Traça-se um paralelo então entre a atitude do autor perante a narrativa e a criação cênica abordada pelo viés do Estado Brincante: “Esse tempo primordial de indefinição, essa travessia pelo desconhecido é um dos mais saborosos momentos do labor da escrita. Esse é o momento divino em que tudo pode ainda ser.”. (COUTO, 2016, p. 3) É este o momento almejado com o Estado Brincante: o da potencialidade, feito células de um embrião ainda destituídas de uma função específica, mas constituídas de todo potencial do devir - o que se assemelha também ao silêncio.

                 O silencio interior é defendido por Grotowski como a base para a criação cênica, sendo para ele uma descoberta individual que depende de o sujeito realmente estar no lugar em que está (COLHO, 2009, p. 154), eliminando um fluxo interno incessante de pensamentos. Do mesmo modo, considero o silencio interior como um importante elemento acionador do Estado Brincante, ao ancorar a presença no aqui e agora. Diz respeito a um aquietamento dos pensamentos e expectativas, colocando foco no que se passa no momento presente. Para tanto, assim como diversos métodos de meditação, indica-se colocar a atenção na respiração, sem a tentativa de controlá-la, mas apenas percebê-la, consequentemente percebendo a si e ao ambiente.

É a partir deste silencio que se faz possível de fato relacionar-se com o que se apresenta e estabelecer vínculos. Assim como à criança, que se move a partir daquilo que agrada ou desagrada seus sentidos, os vínculos se dão principalmente a partir dos sentidos, e abrem o caminho à experimentação que é o Estado Brincante. Para melhor concretização do mesmo, serão enunciadas aqui algumas propostas de acionamento com as quais me deparei ao longo desta pesquisa e que foram desenvolvidas por pesquisadores abordados no Capítulo 2.

                 No que diz respeito à condução dos exercícios, é fundamental uma escuta e abertura para o grupo que possibilite um ambiente favorável a uma assimilação sem julgamento, com suavidade e sem qualquer pressão para se chegar a um resultado predeterminado, como propõe Olsen (2004, p. 119). Uma condução que seja também influenciada e guiada pelo Estado Brincante, especialmente no que diz respeito à disponibilidade para estabelecimento de relações, assim como nos traz Lilian Villela: “Ser professor é renovar constantemente o interesse pelo outro” (informação verbal)[4].

                 Cabe ainda mencionar uma definição de Fabião para corpo cênico, que pode ser tida como um breve esclarecimento do objetivo das proposições que virão: “Um corpo cênico porque desautomatiza mecânicas perceptivas, cognitivas e comportamentais [...] um corpo cênico porque em estado de experiência e experimentação” (FABIÃO, 2010, p. 324).

                 Como já mencionado, as características elencadas como pilares para a criação cênica se interpenetram, porém buscarei apresentar exercícios nos quais cada uma delas mais se evidencie. Bonfitto (2012, p. 4) descreve brevemente algumas práticas de workshops de Marina Abramovic[5], entre elas a de caminhar para longe de casa[6], parar, colocar uma venda e encontrar o caminho de volta. Esse exercício faz parte da sessão de consciência sensorial e receptividade e visa aumentar a qualidade de captação de estímulos externos e internos a fim de possibilitar a ampliação de horizontes perceptivos (BONFITTO, 2012, p. 5). Isso se relaciona intimamente à abertura fundamental ao Estado Brincante. Para tanto, mesmo que na impossibilidade de realizar essa caminhada com vendas, fica como interessante proposição o ato de simplesmente aumentar a percepção dos estímulos externos e internos.

                 Ainda referente à abertura, um interessante exercício é proposto por Olsen (2004, p.120): “Olhos de Criança”. Consiste em ficar em pé numa postura relaxada e bater gentilmente e sua barriga “relaxada”, depois massageá-la circularmente, usando a imagem da “barriga de dois anos de idade”, aberta e desprotegida; manter suspiros durante um longo tempo, com respirações fáceis para continuar a soltura. Risadinhas e bocejos são um bom começo, até que quando estiver relaxado, ficar livre de expressões, “com as pessoas entrando em contato com sua mente singela de dois anos de idade”. E então se indica a todos os participantes que olhem ao redor do espaço de modo simples, desfrutando das cores, texturas e formas. Passam a caminhar de modo simples e fácil, e ao encontrarem uns aos outros, gradativamente olhar nos olhos, mantendo a barriga solta e relaxada. Num momento, o condutor diz: “Olhem para esses olhos que estão vendo e, com curiosidade simples de criança, perguntem: ‘Quem está aí?’ ”, e constantemente recorda aos participantes que abandonem suas armaduras e olhem nos olhos uns dos outros com serenidade. É indicado que o tempo de duração dos olhares vá aumentando até durar pelo menos três minutos ou mais. Essa proposição estimula uma disponibilidade do artista cênico e consequente estado de descoberta, passando a receber o que chega através dos sentidos de outra forma.

                 Já é abordada então, em paralelo, uma possível investigação de descoberta, que também pode ser trabalhada através de uma proposição de Fabião (2010, p. 324), com foco em ativar e ampliar a sensorialidade. Consiste em investir nas relações mais elementares de percepção e interação consigo mesmo, com o meio e com o outro através dos cinco sentidos: tato, audição, olfato, paladar e visão (FABIÃO, 2010, p. 324). Segundo ela, essa prática visa aguçar e expandir as capacidades sensoriais culturalmente domesticadas e atrofiadas pelo uso banal. Acrescento ainda que o movimento pode ser tido também como um sentido, e fazer uso dele nessa investigação, como um meio de descoberta e aprofundamento do que se descobre através dos outros sentidos, pode ser de grande valia.

                 Olsen (2004, p. 132) propõe um exercício denominado “Aldeia dos Idiotas”, que pode ser muito favorável para aguçar a espontaneidade, desinibindo e desautomatizando ao “introduzir e esgotar a idiotice fundamental da condição humana”. Os participantes devem começar deitados de costas no chão e são dadas as boas vindas à “Convenção dos Idiotas”, onde todos tem a missão de passar a ficar na posição de pé da maneira mais idiota possível. O autor utiliza a seguinte narração: “Agora, sem ferir a si próprios ou a qualquer um próximo a vocês, devem ficar de pé da maneira mais idiota possível. Não há nenhuma lógica nisso. É ridículo; não faz nenhum sentido. Ok... E... Vamos!“ Depois, são lembrados de que não tem a força bruta como seus únicos meios e podem utilizar outros modos como “ficar em pé cantando, convocar a ajuda de um mosquito de estimação ou tornar-se uma figueira, qualquer coisa!”. Em seguida é dito que estão num mundo normal e podem parecer normais, o que faz com que relembrem normas sociais e sugestões de comportamentos, tentando descobrir o “modo certo” de se comportar. Tendo como foco a espontaneidade, acrescendo ainda que seria interessante prosseguir a exploração não apenas para ficar de pé, mas movendo-se livremente pelo espaço, como idiotas ou como “normais”, seguindo o modo como quiserem, mas de preferência realmente acreditando em suas idiotices, não as menosprezando, mas valorizando-as enquanto novas possibilidades de se moverem, dando vazão aos impulsos internos.

                 Esta última indicação já se relaciona ao quesito expressão e pode partir daí tal investigação, como também ser realizada outra proposição de Olsen: a “Perspectiva Seletiva”. Nela, os participantes andam ao redor do espaço e é dada a indicação de que se permitam ficar irritados com o que estão enxergando, ouvindo ou percebendo de alguma forma, mas apenas deixando-se ficar irritados, e não tentando sentir ou demonstrar algo, permitindo que a confiança trabalhe. A expressão será então uma reação honesta às suas percepções. Depois, a orientação é para que se permitam ficarem fascinados por aquilo que percebam ao redor. Essa proposição também se relaciona com a imaginação, na medida em que, segundo Olsen, este mecanismo interno é o mesmo dispositivo necessário para “ver com os olhos de um personagem”.

                 Sobre a imaginação, outra proposta de Olsen (2004, p.128) pode ser muito eficaz: a “Retrospectiva de Vida”, que é um exercício privado e pode ser feito em qualquer momento e lugar. Durante uma hora do dia, sem interrupções, o artista cênico deve alterar sua perspectiva da realidade, observando e participando da vida como se estivesse experienciando uma retrospectiva da vida, como se dá no momento da morte, acreditando que está morto, ao mesmo tempo em que uma parte de sua consciência sabe que está vivo. Tal proposta pode desencadear numa expansão do imaginário no momento presente, bem como outra proposta de Olsen de “Viagem no Tempo”, que se refere a deitar no chão e após fazer algumas respirações profundas acalmando o sistema, levantar para a posição de pé lentamente, com movimentos fluidos e contínuos, durante aproximadamente duas horas. Segundo Olsen, o movimento lento parece colocar a mente em órbita, de modo que recordações, sonhos, vozes e todo tipo de fenômenos mentais podem começar a se desdobrar. Experimenta-se então o tempo como um conceito elástico e líquido, desautomatizando e experimentando, em vez do lugar rígido de sua consciência, um novo ser, mais disponível também ao imaginar. Essas proposições estimulam a imaginação, mas poderia ser ainda mais vivenciada ao de fato realizar ações e relações imaginárias em cenas, vivendo empaticamente outras possibilidades de existência em cena.

                 Todos esses processos mencionados podem trazer um caráter de liberdade imbricado, mas como exploração desta característica em si, pode ser realizado outro exercício de Olsen (2004, p. 121) no qual os participantes se auto-estimulam a rir genuinamente e caírem nessa risada. Durante a experimentação, é dada a indicação de que não precisam necessariamente para isso utilizar de movimentos enormes e exagerados, mas podem partir de lembranças de momentos particulares em que se apegaram fazendo algo muito tolo ou absurdo.

                 No que diz respeito ao movimento integrado, cabe ressaltar que a maior parte do que já foi proposto considera o corpo em seu movimento de integração. Mas é possível afirmar também que ao artista cênico que em seu ofício leva em consideração o corpo em movimento integrado, as fronteiras entre arte e vida são bastante fluidas, de modo que o pessoal e o artístico incidem direta e profundamente um sobre o outro, assim como afirma Bonfitto (2012, p.4) ao tratar do treinamento artístico como um modo de existência. O autor ainda afirma que Abramovic considera que o meio para a instauração de relação com o público, estabelecendo troca de energia com o mesmo, é o trabalho sobre si - estimulado, recuperado e resgatado nas suas práticas. Ou seja, as relações podem realmente se dar a partir do momento em que o artista cênico está inteira e integralmente envolvido no ato artístico.

                 Visando ampliação da capacidade de relação, tem-se ainda uma proposta de Fabião (2010, p. 324), por ela elencada com o objetivo de acelerar um aspecto do corpo cênico: a conectividade. Consiste em provocar entrelaçamentos entre este corpo e elementos como o espaço, o tempo, uma história, uma ideia, uma palavra, um objeto, um conceito, partes do corpo, corpos uns com os outros etc. Esses entrelaçamentos seriam então as relações, fundamentalmente estruturantes do Estado Brincante.

                 Concluindo esta pesquisa, cabe ainda apresentar a palavra brincar, em sua etimologia[7]: do latim vinculum (vínculo; laço), que deriva de vincire (seduzir, encantar). Assim, o Estado Brincante diz respeito sobretudo a uma presença disponível ao vínculo, ao encanto de se relacionar. Logo, a uma criação cênica baseada nesse princípio, estaria em foco não o que se mostra ao outro, o que esteticamente mais agrade ou surpreenda, mas sim o relacionar-se com o outro, ocasionando no que poderíamos chamar - ainda que sem uma aprofundada reflexão sobre tal - de uma estética da relação. Estética esta que seria ainda movimento de integração, se fazendo inteira no momento presente, em constante devir, feito um respirar brincante:

 

Dou-te risos e suspiros.
Pois que o Estado Brincante
me lançou a uma estética da relação.
E o contorno de mim, este corpo enfim, 
fez-se completo o ar que entra e sai, 
entra e sai, entra e sai, se dizendo: 
sou vida e em ti renasço.

 

 

[1] Entendendo-o em sua integração com mente/aspectos imateriais (pensamentos, emoções, sensações, energia etc).

[2] Cf. p. 45.

[3] BONFITTO, Matteo. “Algumas Noções de Treinamento: Práxis - Poiesis - Modos de Existência”. Treinamento e Modos de Existência. 1ed.: , 2012.

[4] Reflexão fornecida por Lilian Freitas Vilela, em aula de Estudos Somáticos do curso de Licenciatura em Arte-Teatro, em setembro de 2016.

[5] Artista performativa (1946) nascida na Iugoslávia.

[6] Tais propostas fazia parte de workshops denominados “Cleaning the House” (“Limpando a Casa”).

[7] Disponível em < http://www.dicionarioetimologico.com.br/brincar/> acesso em outubro de 2016

(in)CONCLUINDO:

O Estado Brincante
e seus acionamentos

LALITA DEVI
Deusa hindu cujo nome significa "aquela que brinca" 

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