Trazidas à tona as características que baseiam uma visão acerca do brincar, abre–se um campo para que possamos relacioná–lo à criação cênica. Importante ressaltar que mais uma vez não se trata de encaixotar e limitar uma visão a partir dessas características, mas de elencar pilares que sustentem uma possibilidade de atitude perante a criação artística. Ao longo deste capítulo, ao utilizar a expressão “criação cênica é...” não se visa uma obrigatoriedade restritiva, mas apenas uma assertividade.
Não me restrinjo somente ao teatro, de modo que essa perspectiva pode abarcar também a dança e a performance[1]. Tanto é assim, que a costura desse posicionamento se dará com referências de artistas e pesquisadores das diversas áreas das artes cênicas, como Eleonora Fabião, Mark Olsen, Peter Brook, Renato Ferracini, Matteo Bonfitto, Jerzy Grotowski, Suzi Frankl Sperber, Isabelle Launay, Sandra Meyer Nunes e Fabiana Monsalú. Traçando relação com tais pesquisadores artísticos tem–se também como referência Bonnie Bainbridge Cohen, esta referente a uma área de estudo específica, os estudos somáticos, que mais adiante será abordada em sua íntima relação com alguns aspectos do brincar aqui defendidos.
Criação Cênica é relação
É com Eleonora Fabião (2010) que embarcaremos inicialmente. Ela aborda um estado cênico no qual é bastante importante a questão relacional. A este estado não estaria em foco a constituição de uma presença de impacto em virtuose, mas as relações que o artista cênico se disponibiliza a experienciar, os tempos e espaços que venham à tona com o outro:
Ação cênica é co-labor-ação. Neste sentido, a famigerada “presença do ator”, longe de ser uma forma de aparição impactante e condensada, corresponde à capacidade do atuante de criar sistemas relacionais fluidos, corresponde a sua habilidade de gerar e habitar os entrelugares da presença. (FABIÃO, 2010, p. 323).
Assim, a essa criação de sistemas relacionais fluidos estaria pressuposta uma percepção que já fosse, em si, participação: “Sou parte; logo, existo. Ou ainda: participar; logo, existir” (FABIÃO, 2010, p. 325). Toma viagem conosco também Renato Ferracini (2010), que através do artigo Materialidade: forças invisíveis da atuação, traz a ideia de que é na experiência do encontro que a materialidade do corpo cênico pode acontecer e concretizar forças neste corpo e a partir dele. Tal materialidade se refere a um “corpo em sua presentificação potente como intensificação poética a abrir fissuras nas forças estratificadas e gerar nessa ação fluxos libertos e abertos de força” (FERRACINI, 2010, p.1).
Assim, materialidade, segundo ele, não seria apenas a exposição material corporal, mas uma explosão de potência e fluxo de forças no encontro. Estas constituiriam ainda um mapa de forças, que seria constantemente reestruturado a partir de diferenças produzidas do/no encontro. Em virtude dessas forças serem relacionais, a potencialização de um mapa corpóreo de forças só se daria, então, na relação com outro mapa corpóreo de forças:
O corpo material - transbordado e atravessado por forças - somente se potencializa e se intensifica na relação com o outro e por ser esse mapa de invisibilidades não pode mais ser definido por sua subjetividade individualizante, mas pelo grau de potência que ele produz enquanto mapa de forças em relação de alteridade; alteridade essa a ser potencializa no encontro com o outro ou no encontro com o redimensionamento de suas próprias forças. E o que é esse grau de potência? É um certo poder de afetar e ser afetado. (FERRACINI, 2010, p. 3).
Ferracini nos traz então uma importante chave: a alteridade. A capacidade de se relacionar com o outro a ponto de ser o outro, de se colocar em seu lugar e se relacionar também a partir de tal. Sobre isso, podemos considerar um depoimento de Denise Stoklos, em conversa com Eleonora Fabião, a respeito do corpo cênico e estado cênico:
Comunicação é sempre amor, não tem outro meio. E amor é sempre acompanhado por confiança, confiança de que o outro é capaz; porque o outro sou eu. Se o outro é capaz, eu também me torno capaz. Isto é o oposto de paternalismo, patriarcado, capitalismo. É a liberdade. Quando eu posso receber o outro, então estou comunicando; quando eu escuto o outro e sei que posso falar também. Estes momentos não acontecem todos os dias porque estamos inseridos em fortes estruturas de poder e opressão – estão ao nosso redor, por dentro, por toda parte. Vivemos num mundo que não quer que sejamos tocados porque se formos, nos tornaremos poderosos e capazes de mudar as coisas. Teatro político é, portanto qualquer teatro voltado para esta noção básica de respeito aos seres humanos como iguais. E estar sempre em movimento porque nada está de fato completo e finalizado. (FABIÃO, 2010, p. 325).
Deste modo, essa proposição nos revela um modo de estar em criação cênica que seria ainda um “entrelaçamento”. Um entrelaçamento que se dá não apenas entre os artistas cênicos, mas também, e principalmente, com o espectador, sendo os dois (artista cênico e espectador) videntes e visíveis, tateadores e táteis, atores e espectadores, em constante movimento simultâneo. É a partir desse entrelaçamento que o corpo cênico defendido por Eleonora ”conhece e se dá a conhecer”. Entrelaçados então, alguma coisa é profundamente experienciada fora da tirania das palavras, como aborda Mark Olsen (2004), em Máscaras Mutáveis do Buda Dourado. Também segundo ele, há um momento, no teatro, em que ator e plateia fundem–se de um modo que desafia a descrição. O que é possível perceber, no entanto, seria seu efeito, como ”um estouro de risadas, um calor que perpassa o espaço, um suspiro ou mesmo um silêncio pesado” (OLSEN, 2004, p. 31). Apesar de parecer demasiado subjetivo esse entrelaçamento e fusão que ocorre no teatro, Mark Olsen o defende a partir da simplicidade de um embarque rítmico em conjunto:
Você não deve ter dúvidas sobre já ter visto pássaros voando numa sincronicidade notável; esse é outro exemplo de embarque rítmico. Os atores e a plateia são, nesse sentido, pássaros voando juntos. A experiência teatral, desse modo, pode se dar como no simples prazer de voar. (OLSEN, 2004, p. 39).
Não é apenas Mark Olsen que trata dessa fusão com certa poesia que nos remete a certa magia. Peter Brook também assim o faz: “[..] aconteceu como comunicação direta só para aqueles que estavam presentes. É isso que alguns teatros chamam de mágica, outros de ciência. Mas é a mesma coisa. Uma ideia invisível foi corretamente mostrada” (BROOK, 1970, p. 19).
Tanto Mark Olsen quanto Peter Brook transitam no campo da sacralidade, traçando muitas vezes relações entre arte e ritual. Olsen pesquisou com afinco as relações entre o ofício do artista cênico e o buscador espiritual e Peter Brook aborda um capítulo como “Teatro Sagrado”, em . Não é o foco desta pesquisa essa investigação do trânsito entre criação cênica e espiritualidade, no entanto, a importância deste pilar em questão (Relação) esbarra mais uma vez aí, através de Suzi Frankl Sperber:
Consegue–se recriar o espaço da sacralidade no momento em que se estabelece relações. Esta é uma coisa mágica, misteriosa, possível só quando é preservada a relação com o outro, a relação consigo mesmo, ao mesmo tempo que se rompe a noção de espaço e tempo, que se abrem para outras dimensões. (SPERBER, 1999, p. 61).
Voltemos à Eleonora Fabião e concluiremos que esse espaço “mágico” proposto na criação cênica a partir das relações seria o espaço do devir, um campo aberto a infinitas possibilidades a partir da conectividade:
Daqui, vejo o palco como o mundo percebido e criado por Merleau-Ponty, esse espaço do estar em permanente vir-a-ser por ser-no-mundo, esse mundo de afinidades com a “carne.” [...] Conectividade, essa é a potência da “carne.” O corpo não é receptáculo ou recipiente, anuncia Merleau-Ponty, mas “tecido conectivo;” o mundo não é receptáculo ou recipiente, mas tecido conectivo. (FABIÃO, 2010, p. 323).
Criação Cênica é abertura
Sabendo–se da fundamental importância da Relação para essa perspectiva de criação cênica, se faz necessária ao artista cênico a capacidade de adentrar aquele espaço conectivo e relacional:
Para ativar circuitos relacionais, o ator deve trabalhar tanto no sentido de aguçar sua criatividade como sua receptividade. [...] A busca por um corpo conectivo, atento e presente é justamente a busca por um corpo receptivo. A receptividade é essencial para que o ator possa incorporar factualmente e não apenas intelectualmente a presença do outro. (FABIÃO, 2010, p. 323).
Assim, abordamos o artista cênico não como aquele que cria no fazer demasiado, mas aquele que cria a partir da escuta - não necessariamente age, mas é agido, não executa, mas é executado sempre em relação, ressoa um impulso, se abre, se disponibiliza.
Segundo Fayga Ostrower, esse modo de estar no mundo, em abertura constante, é essencial para qualquer forma de vida e inerente à condição de vida – uma vez que as formas vivas precisam estar abertas a seu ambiente, recebendo, reconhecendo e reagindo aos estímulos, para que possam sobreviver. Ora, se o que estamos visando é uma criação, mesmo que cênica, estamos visando algo vivo. É inerente então nessa pesquisa tal abertura, reconhecendo aqui a importância da sensibilidade. “Baseada numa disposição elementar, num permanente estado de excitabilidade sensorial, a sensibilidade é uma porta de entrada das sensações.” (OSTROWER, 1987, p. 12).
Essa excitabilidade sensorial estaria ligada ainda a um modo de atenção (a si, ao outro, ao meio). Tal atenção, segundo Eleonora Fabião, é uma forma de conexão sensorial e perceptiva, uma via de expansão psicofísica sem dispersão, uma forma de conhecimento, uma operação ética e poética capaz de desconstruir hábitos.
Seria ainda um estado de alerta destensionado que coloca o artista cênico em presença, como traz Sandra Meyer Nunes:
Atento a si, ao meio e ao instante presente, o corpo do ator abre–se simultaneamente a experiência imediata e a situações pré-estruturadas, como convém o jogo teatral. Este estado de atenção não dirigida abre caminho para a vivência do aqui e agora, uma espécie de estado passivoalerta [...] (NUNES apud GREINER; AMORIM, 2003, p. 133).
Este estado de atenção é, para Fabião, uma pré–condição para a ação cênica e uma “tensão relaxada que se experimenta quando os pés estão firmes no chão, enraizados de tal modo que o corpo pode expandir–se ao extremo sem se esvair” (FABIÃO, 2010, p. 322).
Fabião (2010, p. 325) também conversa sobre estado cênico e corpo cênico com Honora Fergusson, que traz a ideia de vulnerabilidade, tão semelhante ao que entendemos aqui por abertura. Vulnerabilidade é o ponto primordial para “atuar bem”, segundo ela: “Se você perder a vulnerabilidade não será um bom ator”.
Por vulnerabilidade poderíamos entender também um estado de deixar–se afetar para a ação e não somente a realização mecânica de uma ação por si, como coloca Renato Ferracini. Ao abordar o estado em que se dá a materialidade[2], Ferracini diz que é necessária uma contínua experimentação, sobretudo da escuta dos campos de força em atravessamento, deixando–se afetar por eles. Afeto este que seria ainda uma permeabilidade que mantém o artista cênico em constante receptividade, não o endurecendo em certezas, mas abrindo–o:
Contra a ideia de corpos autônomos, rígidos e acabados, o corpo cênico se (in)define como campo e cambiante. Contra a noção de identidades definidas e definitivas, o corpo-campo é performativo, dialógico, provisório. Contra a certeza das formas inteiras e fechadas, o corpo cênico dá a ver “corpo” como sistema relacional em estado de geração permanente. O estado cênico acentua a condição metamórfica que define a participação do corpo no mundo. A cena mostra, amplifica e acelera metamorfose, pois intensifica a fricção entre corpos, entre corpo e mundo, entre mundos. (FABIÃO, 2010, p. 322).
Criação Cênica é espontaneidade
Apresentadas as importâncias da relação e da abertura para a perspectiva de criação cênica aqui defendida, tem–se outro elemento primordial: a espontaneidade. Sobre esta, muito se relaciona um conceito apresentado por Bonnie Cohen em Sentir, Perceber, Agir (2015): a corporalização, que, de acordo com ela, “é a consciência das células sobre si mesmas. Você abandona o seu mapeamento consciente. É uma experiência direta; não há passos intermediários nem mudanças. Não há guia nem testemunha” (COHEN, 2015, p. 279).
Deste modo, tal experiência pode ser vista também como ações–reações imediatas advindas de uma conexão atenta consigo mesmo, como aborda Fabião (2010, p.322), com uma diluição do minúsculo espaço de tempo entre pensar e agir, entre estímulo e resposta, entre sentir e emitir, de tal forma que a diferenciação entre um e outro dê lugar a um entrelaçamento entre tais.
O processo de corporalização não é um processo de fazer ou de pensar, mas de ser (COHEN, 2015, p. 278). Não comandadas pelo pensar, as ações advindas do artista cênico mergulhado em espontaneidade trariam então não um estado de criação mental, mas um estado de presença. Este se relaciona ao princípio budista de experiência imediata, também citado por Cohen: quando comer, comer; quando dormir, dormir. Uma simplicidade presente na obediência aos processos sensoriais, emocionais, físicos e biológicos, sem a preocupação mental de entendimento a respeito do que se faz, mas apenas com a ocupação. Segundo Bonnie: “Poderíamos, então, apenas sentir o que estamos fazendo e desistir de saber por que estamos fazendo isso, mas apenas deixar–nos ficar NO estar fazendo” (201, p. 41).
O fluxo abre uma dimensão temporal: o presente do presente. A capacidade de conhecer e habitar este presente dobrado determina a presença do ator. Perder-se nos arredores do instante – na ansiedade do futuro do presente ou na dispersão do passado do presente – faz com que o agente se ausente de sua presença. A qualidade de presença do ator está associada à sua capacidade de encarnar o presente do presente, tempo da atenção. (FABIÃO, 2010, p. 322).
Percebe–se então que Fabião também considera a importância do estado de presença gerado a partir do fluxo, no aqui e agora, ideia muito semelhante ao que se entende aqui por espontaneidade. Ela aborda fluxo como o “nexo do corpo cênico”, é “o passageiro, o instantâneo, o imediato – rajada, revoada, jato. Nascendo e morrendo; nascendomorrendo. O corpo fluido e fluidificante é a matriz espaço-temporal da cena” (FABIÃO, 2010, p. 321). Sobre esta questão, a autora ainda cita Mihaly Csikszentmihalyi:
Em estado de fluxo, ações sucedem-se de acordo com uma lógica interna que parece dispensar intervenções conscientes do agente. O agente experimenta ação como um fluxo contínuo de momentos em que exerce controle absoluto da situação (CSIKSZENTMIHALYI apud FABIÃO, 2010, p. 322).
Este controle seria, de acordo com ela, um lançar–se com precisão, que envolve o agente de forma total, em contraponto a ações automatizadas, dispersas e desatentas ao mundo. Seria um comportamento fora dos padrões cotidianos de conduta, que se relaciona também à visão de Grotowksi acerca de organicidade:
A organicidade é viver em acordo com as leis naturais, mas isto a um nível primário. O nosso corpo é um animal, não se deve esquecer. Não digo: somos animais, digo: nosso corpo é um animal. Então a organicidade está ligada ao aspecto criança. A criança é quase sempre orgânica. A organicidade é algo que se tem mais quando se é jovem e menos quando se envelhece. Evidentemente é possível prolongar a vida de organicidade lutando contra o hábito, contra o alienamento da vida cotidiana, quebrando, eliminando os clichês de comportamento e antes da reação complexa, retornando à reação primária (GROTOWSKI, 1987, p. 102).
Tal reação primária estaria relacionada a uma revelação do que se tem de mais íntimo, como defende Fabiana Mosalú (2014)[3], vinda de um corpo que volta a ser o lugar de todas as possibilidades, lutando contra as atrofias e os bloqueios advindos de séculos de separação entre o físico e o mental. A autora aborda ainda que o ator, adquirido da organicidade defendida por Grotowski, se transforma em sagrado por oferecer os transes de seu corpo e a nudez de sua alma.
Sperber (1999, p. 57) também pesquisa a sacralidade na experiência cênica e, como um elemento constitutivo para tal, considera a abdicação do julgamento, estando este ligado a uma racionalidade exacerbada. Essa abdicação abriria espaço então ao que seria o eixo da ética dos atores em relação ao espetáculo e ao público, segundo a autora: um despir–se das próprias defesas.
A espontaneidade que elenco aqui como primordial à criação cênica está relacionada então a esse despir–se defendido por Sperber, ao desnudamento defendido por Grotowski e Monsalú, ao estado de fluxo defendido por Fabião e Csikszentmihalyi e à corporificação defendida por Cohen.
Criação Cênica é imaginação
Você tem que sair da sua caixa, dos seus preconceitos, sair fora da sua ideia imediata de civilização e cultura. Cada uma dessas coisas é uma espécie de caixa. […] Nós temos antenas; elas têm de estar expostas. Você tem que fazer com que essas antenas estejam vivas e vibrantes, estendidas no espaço. (NEWMAN apud FABIÃO, 2010, p. 325)
Essas antenas vivas e vibrantes que possibilitam aquela saída da própria caixa poderiam ser vistas como outro pilar essencial para a criação cênica: a imaginação, que está ligada sobretudo à permissividade de múltiplas associações que saltam do terreno comum para outros, destituídos de pré determinações.
Segundo Ostrower (1987), as associações, como geradoras do mundo da imaginação, seriam a capacidade de fazer correspondências, conjeturar com base em semelhanças, manipular objetos e eventos, perfazendo uma série de atuações sem precisar necessariamente de suas presenças físicas. Daí surge um pensar e agir em hipóteses, do que seria possível, mesmo que nem sempre provável, ou seja, um mundo experimental.
Ostrower ainda caracteriza tais associações que compõem o terreno imaginativo como “ressonâncias íntimas em cada um de nós com experiências anteriores e com todo um sentimento de vida” (p. 20), o que se relaciona ao que Fabião aborda a respeito do entrelaçamento entre memória, imaginação e atualidade, na investigação do corpo cênico. Para a autora, a exploração do corpo cênico se dá em indissociabilidade entre estas três forças, ocorrendo uma circulação e entrelaçamento ininterruptos entre as referências mnemônicas, imaginárias e perceptivas. Assim, é possível ressaltar que a imaginação está ligada não só às associações do momento presente, mas também a experiências passadas que são rememoradas e operadas com a atualidade.
Tal rememoração, não de modo nostálgico, mas em expansão do que se tem enquanto referências a outras possibilidades, ou seja, a uma reinvenção da realidade passada e presente, em constante interesse pelo novo (ou renovado): “Reiteramos que a imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas possibilidades maiores de certas matérias ou certas realidades” (OSTROWER, 1987, p. 39). A imaginação em si poderia ser meramente mental, construindo intelectualmente mundos possíveis. Porém, no campo da criação cênica, é também realização material, é acontecimento. Ostrower também menciona que o pensar torna–se imaginativo através da concretização de uma matéria, sem o que não passaria de um divagar descompromissado, sem rumo e sem finalidade. Assim, não apenas inovação da realidade, a imaginação aqui é considerada também como possibilidade de (re)criação viva, experienciada, vivenciada, como (re)criação do modo de existir.
Ao se referir a uma vivência de outras possibilidades de existência, abre–se espaço para a menção de um importante elemento na arte cênica: a personagem. Em entrevista com o ator Edgar Castro[4] a respeito do ofício de atuação, ele diz:
É possibilidade de viver, de vivenciar outras experiências de estar no mundo, que são as personagens, outra maneira de se relacionar, né... Esses outros eus. E que não são exatamente entidades, sou eu. Sou sempre eu. Sou sempre eu tentando adquirir a habilidade de me comportar de formas diversas... Expandir um pouco mais a minha presença no mundo, não ficar tão, tão configurada. (CASTRO apud DRAGÃO, 2014, p. 5).
Essa presença não configurada, fora da “caixa” e ligada àquelas antenas mencionadas anteriormente, seria então a base e o meio fundamental para um encontro com a personagem e concretização material da mesma. Uma imaginação concernente também aos modos de se relacionar e se aproximar do que se apresenta enquanto material de trabalho cênico, o que pode ser tratado também como “identificação”, traçando relação com a visão de Olsen:
Visto que o personagem precisa ser desenvolvido, o ator deve começar se identificar e, verdadeiramente, simpatizar–se com o personagem inteiro, até mesmo com os aspectos feios ou negativos. Esse ato de abertura em relação ao personagem, amando–o, enxergando as suas debilidades e faltas, jogando incondicionalmente com a verdade do personagem, isso é um ato de profunda compaixão. (OLSEN, 2004, p. 59).
Deste modo, a aproximação com a personagem pede um elemento de suma importância ao artista cênico: a alteridade, que se relaciona com a imaginação enquanto ato de colocar–se no lugar do outro, imaginar–se outro. Uma expansão de percepção, de presença e de atitude, que acarreta uma possibilidade de identidade fluida, ou seja, não uma estagnada certeza a próprio respeito e consequentes ações monótonas, mas sempre um devir advindo da capacidade de compor novas associações com a realidade e o que nela se apresenta.
Sobre isso, Edgar Castro fala a respeito de uma imagem que a ele é muito interessante: como se nós todos fossemos um campo vasto e cada pessoa em sua individualidade e identidade conhecida fosse apenas um pequeno recorte deste campo. Ou seja, o campo de possibilidades de existência é muito mais amplo do que apenas o recorte que cada um faz de si. E para ele, atuar talvez seja encontrar outros recortes, outros desenhos nesse vasto campo.
Percebe–se então que ao trabalho com personagens, e também à criação cênica em si, tem–se como forte elemento propulsor e estruturante uma imaginação ativa. Ou seja, um estar em constante devir, redescobrindo múltiplas possibilidades de associações, concretizando–as em experimentação e vivência.
Criação Cênica é expressão
Um estado de espontaneidade, advindo de abertura e relação e disponível aos voos imaginativos, desemboca em um estado também de expressão. Retomando as ideias de Grotowski acerca de “organicidade”, de acordo com Monsalú (2014, p. 34), ele a define como a potência de uma corrente de impulsos que surge do ator e que se exterioriza com a realização de ações precisas. Deste modo, outro elemento entra em questão: a exteriorização, processo consequente àquela abertura e espontaneidade presentes na criação cênica, de acordo com o que aqui se defende sobre tal.
Essa expressão seria a invenção de uma forma para o que ocorre internamente. Assim, podemos também retomar as ideias de Ferracini no que diz respeito ao corpo que escuta a realidade enquanto campo de forças, pois, segundo ele, o impulso que responde a necessidade de criar uma forma para essa escuta é a criação artística:
Absorvida no corpo como sensações, tais forças acabam por pressioná-lo para que as incorpore e as exteriorize. As formas assim criadas [...] são secreções do corpo. Mais precisamente elas são secreções de suas micropercepções. Elas interferem no entorno na medida em que fazem surgir possíveis até então insuspeitáveis. É nestas circunstâncias que tais formas se fazem “acontecimentos”. (ROLNIK, 2006 apud FERRACINI, 2010, p.4).
Quanto a essas formas criadas, poderíamos também compreendê–las como gestos, traçando um paralelo com o que Brook traz à tona ao tratar da relação entre ator e espectador, considerando o gesto como o ato de mostrar algo a outra pessoa, respondendo a uma necessidade mais profunda e interna do ator:
O trabalho do ator nunca é para uma plateia e, no entanto, é sempre para ela. O espectador é um parceiro que precisa ser esquecido e também constantemente levado em conta: um gesto é uma afirmação, uma expressão, uma comunicação e uma manifestação privada de solidão – é o que Artaud chama de sinal através das chamas; todavia implica numa comunhão de experiência, uma vez feito o contato. (BROOK, 1970, p. 19).
Brook (1970, p. 22) ainda faz relação entre essa expressão e a “autopenetração” defendida por Grotowski, no sentido de relacioná–la à coragem do ator em se expor, mostrando seus próprios segredos através da mostração dos segredos da personagem. A expressão do ator se faz então como um sacrifício, segundo eles. Um sacrificar daquilo que a maioria prefere esconder.
Deste modo, junto à expressão tem–se um aspecto que considera como primordial o outro, sendo então um aspecto social, de comunicação. De acordo com Ostrower (1987), é aí que uma atividade se torna um ato de criar, ao abarcar em simultaneidade o enfoque sensível, consciente e cultural, convertendo a sensibilidade em criatividade por se ligar a uma atividade social. A autora também defende tal comunicação a partir das formas, caracterizando estas como ordenações. Para ela, as formas/ordenações fazem de uma expressão, uma comunicação: “[...] por meio de ordenações, se objetiva um conteúdo expressivo. A forma converte a expressão subjetiva em comunicação objetivada. Por isso, o formar, o criar, é sempre um ordenar e comunicar” (OSTROWER, 1987, p. 24).
Tal comunicação parte de um trânsito entre interno e externo ao sujeito. A expressão a qual nos referimos aqui considera então uma percepção interna que embasa a comunicação com o outro. Sobre isso, muito se relacionada o que Susan Aposhyan diz sobre o trabalho de Bonnie Bainbridge Cohen, calcado em sua habilidade de entrar em contato consigo mesma em nível microscópico e se comunicar a partir desse lugar dentro de si mesma e para esse lugar dentro dos outros (COHEN, 2015, p. 13). Segundo Cohen, trata–se de um diálogo contínuo entre consciência e ação: “tonar–se consciente dos relacionamentos que existem em nosso corpo e nossa mente e agir a partir dessa consciência” (COHEN, 2015, p.24).
Assim, a expressão seria também essa passagem à consciência. Segundo Ostrower, os processos de criação acontecem no âmbito da intuição, não se reduzindo a operações dirigidas pelo conhecimento consciente, mas passando a este na medida em que são expressos, ou ainda, na medida em que lhes damos uma forma (1987 p.24).
Sandra Meyer Nunes (2003) também trata desta relação entre inconsciente e consciente na criação cênica, relacionando ainda à espontaneidade e estrutura, em constante trânsito:
Entre os espaços permitidos pelo conhecido, é possível ao ator esgarçar o tempo e espaço para permitir os momentos que não estão pré-dados. Estrutura e espontaneidade permeando–se em tempo presente. O ato criativo “inconsciente” é disparado pelo que pode ser “consciente”, ou vive versa. Uma busca sem antecipação de encontros. (NUNES apud GREINER; AMORIM, 2003, p. 132).
Deste modo, ao considerar o outro, estabelecendo uma comunicação a partir de percepções e impulsos internos, que podem ser considerados inconscientes, faz–se um trânsito ao consciente, em ordenações e formas: faz–se expressão.
Criação Cênica é descoberta
Caminhando nesta direção, na qual a criação cênica está embasada em relação, abertura, espontaneidade, imaginação e uma expressão considerada como ordenação do interno ao externo, fazendo–se comunicável ao outro ao se fazer consciente, tem–se outro processo: o da descoberta. Se para a criança a descoberta caminha mais no sentido de conhecer o mundo no qual está chegando, ou seja, o exterior, para o artista cênico, a descoberta não seria apenas do externo, mas também do interno, uma descoberta de si, quase que redescobrindo a própria criança.
Neste sentido, Brook (1970, p. 22) cita Grotowski por este considerar o teatro como um veículo, um meio de autoestudo e autoexploração, tendo a si próprio como campo de trabalho, aumentando o conhecimento de si mesmo num processo já mencionada anteriormente[5], de autopenetração. Sperber também defende a manifestação de sacralidade na experiência cênica a partir de uma descoberta neste mesmo sentido: “O sagrado se revela quando por um lado a pessoa se descobre a si mesma, e, por outro lado, descobre e aceita o outro, simultaneamente” (SPERBER, 1999, p. 60).
A criação cênica poderia ser tida então como sagrada, por esse viés, também de acordo com Artaud: “Artaud dizia que só no teatro poderíamos nos libertar das formas limitadas nas quais vivemos nosso dia–a–dia. Isto fazia do teatro um lugar sagrado onde pudesse ser encontrada uma realidade maior”, como traz Brook (1970, p. 20), e ainda, segundo com o mesmo: “É evidente que ainda queremos captar nas artes os fluxos invisíveis que governam as nossas vidas”. Longe de limitar essa potência de descoberta ao teatro, como parece fazer Artaud e Brook nestas colocações, aqui se faz uma reflexão apenas no sentido de potência de conhecimento de si, do outro e do mundo através da criação cênica.
Ao se conhecer, poderia também conhecer o homem em si, o meio onde está inserido e com que o compartilha, ampliando sua percepção de mundo e respondendo uma parte deste anseio em compreendê–lo:
Quando me tornei adulto, o teatro transformou–se numa válvula de escape para a energia criativa e uma indispensável estratégia de base. Foi no mundo do teatro que comecei a extrair algum sentido do mundo exterior e a encarar o imenso mundo que havia dentro de mim. (OLSEN, 2004, p. 15).
Esse sentido ao qual se refere Olsen pode ser tratado também como uma apreensão, termo utilizado por Ostrower. De acordo com ela, ocorre uma articulação através da percepção: “[a percepção] Articula o mundo que nos atinge, o mundo que chegamos a conhecer e dentro do qual nós nos conhecemos. Articula o nosso ser dentro do nãoser” (OSTROWER, 1987, p. 13). Em continuidade a esse processo, segundo ela, na ordenação[6] dos dados sensíveis, os níveis do consciente se estruturam e, a partir disso, é permitida uma apreensão do mundo, que ocasiona uma apreensão também do próprio ato de apreender, permitindo que, apreendendo, o homem compreenda. Desemboca também em compreensão aquele processo de “corporalização” defendido por Cohen:
Há uma consciência muito conhecida do momento experimentado iniciado nas próprias células. Nesse caso, o cérebro é o último a saber. Há um conhecimento completo. Há um entendimento tranquilo. Desse processo de corporalização surge sentimento, pensamento, testemunho, compreensão. A fonte desse processo é o amor. (COHEN, 2015, p. 279).
Susan Aposhyan (COHEN, 2015, p.12), ao discorrer sobre o trabalho desenvolvido por Cohen, o BMC[7], também chega no termo compreensão, esta vinda a partir da mescla, alternância e união entre o conceitual e o experimental, entre a observação e a corporalização. Retomando as ideias acerca de descoberta do mundo – em consequência à descoberta de si – através da criação artística, Cohen faz relação entre esse processo e a experimentação da consciência nos níveis celular e tecidual, muito presente nas proposições do BMC:
À medida que somos mais capazes de experimentar a nossa consciência nos níveis celular e tecidual, somos mais capazes de compreender a nós mesmos. Ampliando o conhecimento sobre nós mesmos, aumentamos a compreensão e a compaixão pelos outros. Ao experimentar a singularidade das células no contexto da harmonia dos tecidos, descobrimos a individualidade no contexto de comunidade. Ao adquirir consciência dos diferentes tecidos e da natureza da sua expressão no mundo externo, expandimos a nossa compreensão sobre outras culturas no contexto da Terra como um todo e a percepção do nosso planeta na consciência expandida do Universo. (COHEN, 2015, p. 24).
O processo de descoberta está relacionado também a um estado de experimentação e investigação, bem como Fabião (2010, p. 324) caracteriza o corpo cênico, e de curiosidade. Esta seria geradora de uma inquietação investigativa defendida por Isabelle Launay, um perguntar-se dos porquês, a modo de trazer alguma consciência e compreensão ao ato de criar cenicamente:
Eu busco, então, recolocar as pessoas em um estado de curiosidade em relação ao corpo, ao movimento, a questionar essa vontade estranha de fazer espetáculos diante de um público, de se exibir diante das pessoas que pagaram para olhar alguém que mostra o seu corpo, ou o seu ser. (LAUNAY apud GREINER; AMORIM, 2003, p. 107).
Curiosidade, experimentação e investigação: juntas, a serviço de uma penetração em si, um autoconhecimento que se expande para uma apreensão do mundo. É deste modo que pode ser considerado o estado de descoberta aqui defendido.
Criação Cênica é liberdade
Em continuidade ao que vem se apresentando, sobretudo àquela capacidade de vivenciar outras possíveis situações e modos de existir, outro aspecto acerca da perspectiva de criação cênica aqui apresentada se faz fundamental: a liberdade. Sobre isso, Edgar Castro[8] diz:
A liberdade como essa possibilidade de se colocar verdadeiramente com a tua existência no lugar do outro. Não apenas como alguém que aceita. Mas como alguém que vive essa outra possibilidade de existência. Descobre em si mesmo esse outro campo. Então a interpretação pra mim tem transitado um pouco nesse lugar, de trânsito, exercício de liberdade como essa habilidade de se colocar em outro lugar que não esse que constitui a nossa identidade, ou seja, essas relações que nós estabelecemos com as coisas no mundo, mas vivenciar outras possibilidades.(CASTRO apud DRAGÃO, 2014, p.5).
Assim, a liberdade é tida como uma expansão para além da realidade conhecida e comum, abrindo espaço àquilo que é possibilidade, característica já muito mencionada no item acima. Aqui, “possibilidade” se refere, sobretudo, ao fato de na criação cênica estar permitido:
Permitido
relacionar–se verdadeiramente
consigo, com o outro e com o espaço;
Permitido
abrir–se,
em estado de vulnerabilidade e entrega;
Permitido
habitar a espontaneidade,
despir–se em estado de fluxo;
Permitido
conhecer–se, viajar nos mundos internos,
descobrir–se, descobrir o outro, descobrir o meio;
Permitido
expressar–se, comunicar–se,
sem amarras transitar de dentro para fora;
Permitido
experimentar o impossível,
vivenciar o imaginado.
Por esse viés, a liberdade seria então um aspecto da criação cênica que circunda os outros aqui mencionados, sendo a possibilidade de concretização e realização dos mesmos, de modo fluido e em constante experimentação.
O caráter experimental também é fundamental para a criação cênica e se relaciona com a liberdade na medida em que essa perspectiva de criação não se trata de uma maneira específica de fazer ou repetir algo, mas de estar em constante investigação, livre para o que um estado de relação, abertura, espontaneidade, descoberta, expressão e imaginação pode ocasionar. Isso também se relaciona à caracterização do corpo cênico que Fabião defende:
Um corpo cênico porque desautomatiza mecânicas perceptivas, cognitivas e comportamentais; um corpo cênico porque investiga as dramaturgias do corpo e a nervura da ação; um corpo cênico porque em estado de experiência e experimentação. (FABIÃO, 2010, p. 324).
Importante ressaltar que essa desautomatização pode se relacionar com normas sociais, e a liberdade pode ser considerada como possibilidade de ir além das mesmas, porém assim como nos traz (SPERBER, 1999, p. 58), a liberdade em questão consiste sobretudo na suspensão de barreiras pessoais que impedem a própria liberdade, abrindo espaços internos para a própria liberdade e reconhecimento da liberdade do outro. Para a autora, é a partir desta liberdade que se faz possível uma abertura para as relações e religações, no sentido de experiência da plenitude, de suspensão do tempo e do espaço, atingindo a poesia e a magia, em momentos de reunião e de relação especial. Assim, vê–se a liberdade fazendo–se acontecimento, dando vazão à alegria, ao prazer, à celebração:
Estes momentos correspondem à trajetória da revelação, à abertura de novos horizontes. Cada novo horizonte merece uma celebração, correspondente à alegria de haver vencido os limites inconscientes criados à sabedoria e ao conhecimento. (SPERBER, 1999, p. 59).
Lembremos ainda que Olsen (2004) já foi mencionado[9] exemplificando a experiência teatral como o voo conjunto dos pássaros, ressaltando que ela pode se dar como no simples prazer de voar. Não haveria imagem mais próxima a caracterizar liberdade que o voo, sendo então a metáfora para a criação cênica enquanto possibilidade e permissividade experimental, inacabada e incerta, pronta para ser feita e refeita no agora.
Criação Cênica é movimento integrado
Tendo em vista os pilares aqui apresentados acerca dessa perspectiva de criação cênica, cabe ainda um pilar concludente, que tanto ocasiona tal criação, como é fruto dela: o movimento integrado. Trata–se de um movimento do corpo como um todo, compreendendo–o não apenas em sua perspectiva física, mas mental, emocional, espiritual. É essa integração que será tratada aqui, tendo como mote o movimento. Ainda a modo de esclarecer a visão que aqui se compactua sobre o corpo, passarei a me referir ao mesmo como corpovoz, ressaltando que a voz também está sendo considerada, em conjunto. A sonorização é então movimento, assim como o movimento visível do corpo físico.
Esse movimento integrado pode se relacionar ao que Grotowski chama de “ato total”. Segundo Coelho[10], este termo “refere–se à ação na qual o ator está completamente comprometido mental, física, psicológica, vocal e espiritualmente, dentro de uma estrutura precisa”. Sobre esta estrutura precisa, a autora – em consequência à reflexão de Grotowski – ainda vai discorrer relações sobre espontaneidade e precisão na criação cênica, num equilíbrio entre ordem e caos. Apesar de ser uma abordagem que muito casaria com o que vem sido defendido aqui, não será este o foco da similaridade com os pensamentos de Grotowski, mas sim a capacidade do artista cênico de habitar em simultaneidade os aspectos citados, não como múltiplos lugares, mas como um campo integrado de suas até então “partes”, comumente separadas.
Monsalú também aborda essa questão: “Grotowski pretende um corpo que volte a ser o lugar de todas as possibilidades, lutando contra as atrofias e os bloqueios advindos de séculos de separação entre o físico e o mental” (MONSALÚ, 2014, p. 32). A autora faz um apanhado de vários pesquisadores teatrais (Antonin Artaud, Jerzi Grotowski, Eugênio Barba, Luis Otavio Burnier e Mark Olsen) em prol de defender um corpo híbrido do ator, e ao tratar das ideias de Artaud[11], também traz à tona a inseparabilidade entre corpo e mente:
O ator é um ser integral e uno. Nessa linha de raciocínio busca–se compreender a inseparabilidade entre a matéria e mente, convivendo com a realidade paradoxal do uno e do múltiplo que é colocada pelo corpo. Corpo é movimento, e sua compreensão não se restringe à anatomia. Isso coloca o material corporal do ator, não como suporte de uma consciência, mas sim o apresenta como reflexionante, ou seja, na experiência do movimento e na comunicação entre os sentidos. (MONSALÚ, 2014, p. 27).
Similarmente Bonnie Bainbridge Cohen percebe o corpovoz, inclusive desenvolveu um método de educação somática chamado BMC – Body–Mind Centering. Em uma tradução simplória, seria a Centralização Corpo e Mente. Segundo Cohen (2015, p. 22), essa centralização não é um lugar de chegada, mas um processo de equilíbrio que se baseia num diálogo baseada na experiência. Trago aqui algumas definições e esclarecimentos sobre este método por muito se relacionar com a perspectiva de criação cênica defendida, sobretudo no que diz respeito ao movimento integrado:
O Body–Mind Centering (BMC) é uma jornada experimental contínua pelo território vivo e mutável do corpo. O explorador é a mente – nossos pensamentos, sentimentos, energia, alma e espírito. Nessa jornada, somos conduzidos a uma compreensão de como a mente é expressa pelo corpo em movimento. [...] A mente é como o vento, e o corpo, como a areia: se você quiser saber como o vento está soprando, pode olhar para a areia. (COHEN, 2015, p. 22).
Importante ressaltar que, por esse viés, mente abarca então não apenas os pensamentos, mas também sentimentos, energia, alma e espírito. Deste modo, todos esses aspectos estão sendo considerados ao mencionarmos “mente”. O BMC foi mencionado como um método de educação somática, este que é um termo criado por Thomas Hanna (1970)[12] e faz referência ao estudo do corpo como meio da perspectiva experimental pessoal. Nesta área de estudo, “o corpo é experimentado a partir de dentro, corpo e mente não são separados, mas experimentados como um todo” (COHEN, 2015 p. 23). Também segundo a autora, a somatização envolve a experiência cinestésica na qual as células do corpo informam ao cérebro, e o cérebro comunica às células. Cinestesia se refere à percepção corporal enquanto movimentação e posicionamento espacial. Assim, Cohen considera que o movimento é uma percepção, a primeira a ser desenvolvida e, portanto, a mais importante para a sobrevivência. Além disso, a forma como percebemos o movimento torna–se uma parte integral de como percebemos pelos outros sentidos.
Neste ponto, é possível mais uma vez traçar um paralelo com Grotowski, numa íntima relação entre suas ideias referentes a este modo integrado de compreender o movimento: “o movimento se torna um ato de percepção que envolve a capacidade de olhar, sentir e ouvir simultaneamente, ainda que em aparente repouso” (GROTOWSKI in SCHECHNER e WOLFORD, 1997, p. 263). Se tratado deste modo, segundo Coelho (2009, p. 155), o movimento gera um estado de prontidão do corpo para uma ação na qual as potencialidades estão ativas para uma reação sincera em relação ao outro, como forma de plenitude a responder a outrem. Deste modo, feito uma abordagem circular, voltamos ao primeiro ponto aqui elencado como pilar da criação cênica: a relação. O movimento integrado também como gerador de uma relação profunda com o outro, por se tratar de uma anterior inteireza em nível de presença:
[...] Se permitirem que seu corpo procure o que é íntimo ele procura: ao procurar, eu toco alguém, seguro a respiração, algo se detém dentro de mim e nisso há sempre o encontro, sempre o outro... Então aparece aquilo que chamamos de impulsos. Não é possível formulá–lo com palavras. Quando digo corpo, digo vida, digo eu mesmo, digo você inteiro (GROTOWSKI, 2007, p. 206).
Deste modo, assim como defende Monsalú (2014, p. 36), trata–se de um ato de comunhão em que toda nossa natureza desperta e, ainda citando Grotowski, a autora menciona a necessidade da consciência “de que nosso corpo é nossa vida e nele estão inscritas todas as experiências: na pele e embaixo dela, desde a infância até a idade madura e ainda talvez desde antes da infância e desde o nascimento de uma geração”.
Mais uma vez esbarramos num terreno que beira a espiritualidade e mesmo sem aprofundar nele, novamente citamos Sperber, ao defender também essa integração na arte do ator: “A experiência do sagrado permite que se estabeleça uma relação direta entre ação, emoção e pensamento” (SPERBER, 1999, p. 59). Sobre isso Edgar Castro também se refere, afirmando que de acordo com seu ponto de vista, o teatro está a serviço do conhecimento do invisível, do espiritual como uma compreensão mais profunda da materialidade. Questionado sobre as condições para que isso se dê no teatro, o ator traz também uma ideia de movimento integrado: o alinhamento entre as três inteligências: da mente, do coração e do estômago (DRAGÃO, 2014, p. 7). Ele ainda diz que esse alinhamento seria uma espécie de cura quântica que muito se relaciona ao trabalho do artista cênico. Essa cura a qual se refere tem base em palestras do cientista Gregg Braden[13], e trabalha na capacidade de se ter um foco claro na mente e fazer com que isso vibre no corpo (estômago), de modo que o coração envie a informação ao universo, materializando–a.
Esse enviar de informação através do coração remete então a uma integração também aos afetos, tão necessária ao artista cênico em criação. Sobre isso, Monsalú aborda o ator como atleta afetivo num treinamento sensível ao refletir sobre o trabalho desenvolvido por Antonin Artaud: “No trabalho atoral é preciso admitir uma espécie de musculatura afetiva, nas quais estão as localizações dos sentimentos. “O ator é um atleta do coração” (ARTAUD, 1985, p.162)” (MONSALÚ, 2014, p. 27).
Tocar alguém
É esculpir
Estátua fluida
Do afeto.
Acerca de afeto e toque, Cohen também reflete e relaciona a um movimento integrado, imbricando atividade motora e atividade perceptual:
A experiência do movimento e do toque são fundamentais para descobrirmos quem somos e quem é o outro, e como dançamos juntos nessa vida. Sentir não é apenas ser passivamente estimulado; perceber não é apenas receber informação de forma passiva; motor não é apenas responder de modo direto à estimulação. Há atividade perceptual na atividade motora e atividade motora na recepção de informação e na percepção. (COHEN, 2014, p. 278).
Deste modo, há um envolvimento dos recursos psíquicos e físicos, dos mais instintivos aos mais conscientes, como defende Coelho (2009, p. 44) ao refletir sobre o ato total proposto por Grotowski. Este ainda traz a perspectiva de que o artista cênico, ao realmente habitar o tempo presente, chega a uma movimentação “simples”, um estado em que o corpo animal se torna mestre da situação e se movimenta (GROTOWSKI in SCHECHNER e WOLFORD, 1997, p. 264). Deste modo, o movimento integrado como aspecto estruturante da criação cênica, além de retroalimentar a potência de relação, muito se relaciona ao estado de espontaneidade e de abertura; está calcado num estado de descoberta; é chão firme e fluido à imaginação; por meio dele se dá a expressão e habitá–lo é também habitar uma possível liberdade.
[1] Não é intenção desta pesquisa aprofundar as reflexões sobre as peculiaridades e conceitos de "performance", porém, esclareço que o termo está sendo usado no sentido de um campo híbrido das artes, em que as diversas linguagens podem se inter-relacionar, sem fronteiras definidas.
[2] Conceito esclarecido no item acima, “Criação cênica é relação”.
[3] Tal posicionamento da autora advém de reflexão acerca da pesquisa de Grotowski.
[4] Entrevista concedida em 2014, para Isabella Dragão, disponível em: “Conversas à curarte: ensaiando a partir de entrevista com Edgar Castro” (2014).
[5] Cf. p. 39.
[6] A mesma referente à expressão, citada no item anterior “Criação cênica é expressão”.
[7] Método de Educação Somática desenvolvido por Bonnie Bainbridge Cohen. Será um pouco mais esclarecido a diante, na p. 46.
[8] Cf. Nota 32, p. 37.
[9] Cf. p. 31.
[10] COELHO, Paula Alves Barbosa. A experiência da alteridade em Grotowski. 2009. Tese (Doutorado em Teoria e Prática de Teatro) – Escola de Comunicação e Artes, USP, São Paulo, 2009.
[11] Antonin Artaud (1986 - 1948) foi um ator, poeta, escritor, dramaturgo e diretor de teatro francês.
[12] Thomas Hanna criou o termo somática em 1976, quando fundou Somatics: Magazine-Journal of the Bodily Arts and Sciences.
[13] Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=wC65_gDzSJc>. Acesso em junho de 2014.
2.Discorrendo relações com a CRIAÇÃO CÊNICA
