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Quem seria esta que aqui discorre
em defesa de um estado brincante?
Como teria sido o correr da criança desta
que aqui corre uma dança com as palavras
em defesa da criança interna acordada,
pulsando espontaneidade no brincar?
Não teria sido uma criança amante
do brincar livre e da despretensão?
Não teria sido um corpo sem exigências,
solto a brincar?
Não.
[1]

              Foi uma criança com a seriedade nos quereres, num corpo de dança e obsessão.  Longe das delegações de culpas a outrem, banhada em auto-responsabilidade, afirmo aqui que o desejo era mesmo dela: ser bailarina, próprio sonho de criança. Iniciou as aulas aos quatro anos de idade, tendo consigo a seriedade da disciplina misturada ao prazer do movimento. Foi nessa idade que pediu para a mãe de presente de aniversário ser bailarina, atriz e cantora. Recebeu um riso, desses dados às crianças em resposta às suas imaginações inusitadas. Mas a dança clássica, na escola de educação infantil, estava ao seu lado, pronta para recebê-la com suas barras, espelhos e sapatilhas. De delicadeza o corpo pequeno e fino da criança se vestia e foi crescendo em consonância com as horas de aulas, apresentações, competições, alegrias, superações e, afirmo, obsessões e dores. Suas brincadeiras variavam entre dar aulas de balé para as amigas e ser jurada de apresentações gravadas em vídeos. De bicicleta não aprendeu a andar e preferia os ensaios às horas livres na rua, no parque, nos brincares.

              Aos dez anos de idade martelou a cabeça dos pais para um curso de vinte dias em São Paulo, uma imersão numa escola de dança com professores russos. Família de interior, super protetora, julgava ser loucura da menina, mas esta não parou as marteladas enquanto não conseguiu o que queria. As marteladas abriram espaços de compreensão, apoio e aceitação do pai e da mãe. Neste curso teve contato com um professor da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, única filial da escola e companhia russa, quem a chamou para um teste na escola.

              Aos onze anos sai da casa da família, muda-se para Joinville-SC, onde todas as maravilhas e sofreres que acompanham o clichê dos filmes de balé foram vivenciados na pele, nos músculos, nos ossos, nos neurônios, no coração e nas respirações. Pouparemos essa introdução dos detalhes, mas um corpo foi machucado enquanto as auto-exigências ganharam eco em um sistema um tanto quanto desumano de lidar com o corpo, com a dança e com o ser, variando entre super valorizações, elogios, centralizações, alimentos para uma vaidade imatura e humilhações, rejeições e afastamentos ora por lesões, ora por gramas engordadas num corpo que descobre a puberdade.

              Aos catorze anos já havia atravessado lesão em músculo da coxa e fratura por stress nas duas tíbias e em uma fíbula - ossos da canela - além de dores frequentes na coluna, nos joelhos, nos pés e sangue nas sapatilhas, tudo em virtude de horas exaustivas de sobrecarga ao corpo em suas dimensões físicas, psicológicas, emocionais e ouso dizer até espirituais. Aos catorze anos correr não era possível em virtude da dor e os fins de apresentações ou ensaios eram acompanhados de choros escondidos.

              Mas eis que o tempo é rei e a arte é princesa: o teatro fazia parte da estrutura curricular e trazia sopros de prazer, de riso e cor aos dias doídos, tensos e amargos. Era momento de cisão, trazendo decisão de volta para a casa, saída da dança, ida para uma "vida normal".

              Daquele presente pedido aos quatro anos, a parte de querer ser atriz cutucou, chamou, puxou. E uma nova saída do interior das raízes familiares fez nos galhos desta que aqui discorre um correr para a capital, para em São Paulo dar novos rumos a um anseio pela arte. Já dizia Leminski que isto de querer ser exatamente o que se é ainda vai nos levar além[2]. Além e aquém das certezas, as ondas e linhas da vida moviam aos quinze anos os ventos e eventos para que se viva na intensidade a juventude, com sede de vida. Os não saberes tomando conta dos corpos, as artes cênicas se apresentando em suas complexas experiências, o ser se abrindo a se dar nas artes todas. Na cidade de cimento, bate à porta desta que aqui discorre correr ao autoconhecimento. Que para ela seria impossível não esbarrar nessas navegações ao lidar com as artes, em especial o teatro e a performance. E chega o momento em que a dor de estar viva nos arrebata com uma angústia amiga, escancarando o necessário movimento de olhar para si, cuidar de si, sabendo do exterior como eco, sabendo da miséria do mundo ter raiz na miséria de dentro, sabendo que o que não está aqui, não está em lugar algum[3], sabendo do necessário conhece-te a ti mesmo[4].

              No autoconhecimento - esse navegar em auto mar - os enroscos mentais, emocionais e espirituais muitas vezes traziam à tona um caminho sem passagem pelo intelecto para curar as feridas e transcender os temores: o corpo em movimento, a ciência experimental da consciência se fazendo presente na carne. A dança poderia ter sido rejeitada nos planos mentais, mas seu corpo tem em si a sina da revelação. Ele se faz guardião das memórias, protetor dos desejos mais profundos e escancara o que quer que seja. Nos teatros e nas performances, a dança também nunca a abandonou, dava um jeito de expressar pelo corpo o que estivesse latente às criações, aos trabalhos, aos estudos.

          Se o corpo é revelador, revelaria em algum momento quem habita no espontâneo existir. E se o autoconhecimento é navegação nas memórias e raízes, chegaria em algum parque da essência de ser, chegaria na criança. O jogo da vida tirando seus dados levou esta que aqui discorre a correr em trabalhos com crianças, a descobrir espaços de brincar, trabalhar numa brinquedoteca com proposta de arte terapia através do brincar e a desenvolver contações de histórias, rodas de músicas e oficinas artísticas para crianças.

              O brincar chega de mansinho e nos arrebata. Vem mostrando que, ao se abaixar à altura da criança, olhando-a nos olhos e se deixando levar pelo seu imaginário no real da brincadeira, vem à tona um brilho nos olhos e uma plenitude no respirar, um corpo vivo consciente de si, dançando riso e amor, batendo o coração na cor da ação. Se na criança desta que aqui discorre o brincar era duro e a seriedade a acompanhava, em sua jovem adulta o adultério não alcança e dá lugar à leveza, a um rir das quedas, um tirar sarro das imperfeições, uma loucura necessária aos passos, fazendo do chão nosso de cada dia, a base para um corpo que brinca de existir, de recortar possibilidades de existência e colá-las no mundo feito caderno de criança. Esta que aqui discorre correrá defesa do brincar por nele ver a base de toda plena criação, criando arte como modo de vida a dançar uma mudança que nos faça nos olharmos desnudos, estarmos realmente com o outro em nossa potência disponível de ser, de nos entregarmos, nos integrarmos.

[1] Todos os poemas que seguirão adiante, assim formatados, são de minha autoria e foram escritos como parte do desenvolvimento desta pesquisa, ou seja, em 2016.

[2] Disponível em: <https://pensador.uol.com.br/frase/NDE5Nzk0/>. Acesso em junho de 2016.

[3] Informação verbal fornecida pelo líder humanitário brasileiro Sri Prem Baba, em palestra em junho de 2016, fazendo menção a uma afirmação védica: “yad ihasti tad anyantra, yannehasti na tat kvacit”. Disponível em: <http://www.shri-yoga-devi.org/tantra.html>. Acesso em outubro de 2016.

[4] Expressão atribuída ao filósofo  grego Sócrates (479-399 a.C.).

PRÓLOGO:

Crianças e Criações

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